MPF obtém condenação de réus que armazenavam e compartilhavam pornografia infantil em Guaratinguetá (SP)
Casos de pedofilia estão elevados na região. Dados indicam alto número de ocorrências entre alunos da rede estadual nos últimos 3 anos
Foto: master1305/ Freepik
“Alguma mãe aqui tem filha sapekinha?” A pergunta, seguida da foto de uma garota seminua, era um dos artifícios que um morador de Guaratinguetá (SP) utilizava para revelar suas intenções em salas de bate-papo online, frequentadas entre 2016 e 2020. Nelas, o usuário buscava compartilhar imagens com pornografia infantil, conversar com outros pedófilos sobre experiências sexuais com crianças ou mesmo atrair possíveis vítimas. Em diversos diálogos, ele se passava por agenciador de modelos para conquistar a confiança de interlocutoras menores de idade e convencê-las a enviar imagens que mostrassem partes íntimas e posições lascivas. O homem chegava a orientá-las como fazer as fotos e, ao receber o material, tecia elogios vulgares sobre os corpos das meninas.
Os registros de bate-papo e as imagens salvas no computador são parte das provas que o Ministério Público Federal (MPF) utilizou para denunciar e obter a condenação do criminoso a 6 anos e 8 meses de prisão. A sentença do último dia 25 ficou aquém do esperado, e o MPF vai recorrer para o aumento da pena. A decisão judicial soma-se a outras proferidas recentemente contra homens que vêm utilizando a internet para a prática dos crimes na região. Em dois casos também denunciados pelo MPF, as punições aplicadas foram maiores. Dias antes, a Justiça Federal condenou um ex-policial civil morador de Cruzeiro a 7 anos e 5 meses de cadeia. Em agosto, um professor universitário de Guaratinguetá foi sentenciado a quase 9 anos de reclusão.
“Sempre tivemos processos referentes a pornografia infantil na região. Todavia, os crimes sexuais retratados em vídeos e fotografias eram, em geral, distantes, com relação aos quais nada podíamos fazer. Nos últimos anos, porém, temos nos deparado com imagens cada vez mais chocantes. Não se trata de crianças abusadas em países longínquos e datas remotas, mas de vídeos e fotos recentes e que nos revelam que crianças brasileiras, inclusive aqui da nossa região, acabaram de ser vitimadas. E que agora estão sendo vistas enquanto provavelmente seguem sofrendo abusos”, destacou a procuradora da República Flávia Rigo Nóbrega, autora de duas das denúncias do MPF que geraram as sentenças condenatórias.
Compartilhar e armazenar pornografia infantil são crimes previstos nos artigos 241-A e 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente. Embora a lei permita a aplicação de penas elevadas e as condenações sejam mais frequentes, autoridades locais têm constatado um número alarmante de casos de abuso infantil, sobretudo no período que coincide com a pandemia de covid-19. Dados da Diretoria Regional de Ensino de Guaratinguetá revelam que, entre setembro de 2019 e setembro deste ano, ao menos 40 ocorrências de práticas como assédio e abuso sexual foram identificadas envolvendo apenas alunos de escolas estaduais do município.
Os registros, compilados a pedido do MPF, constam de uma plataforma interna utilizada para o tratamento deste e de outros temas na rede estadual e que depende do preenchimento pelos próprios profissionais de ensino. Referentes a um grupo restrito de crianças e adolescentes, as informações sinalizam a gravidade da situação, mas podem dar pistas de um quadro ainda mais perturbador. A diretoria reconhece que os números estão subdimensionados, pois, mesmo que tomem as providências cabíveis, alguns professores, gestores e agentes escolares têm receio de relatar os casos no sistema. O afastamento do convívio escolar nos últimos anos é outro fator que permite deduzir indicadores piores que os apontados oficialmente.
“O mais preocupante é que o aumento do consumo e do compartilhamento de pornografia infantil indicia o aumento do abuso sexual infantil. Durante o período de suspensão das aulas presenciais em razão da pandemia, esses casos foram subnotificados. Não havia mais a possibilidade de o educador perceber que havia algo errado e notificar as autoridades. As crianças ficaram abandonadas à própria sorte, seja em relação a parentes e cuidadores inescrupulosos, seja por lhes ser franqueado acesso irrestrito a redes sociais, quando, sem nenhuma supervisão, eram vítimas fáceis de pessoas mal intencionadas”, completou Nóbrega.
Internet - O MPF tem atribuição para atuar apenas em ocorrências que envolvam o armazenamento e o compartilhamento de material com pornografia infantil, o que geralmente ocorre com uso de dispositivos eletrônicos e da internet. Chegar aos pedófilos nesses casos torna-se, muitas vezes, uma tarefa simples, facilitada pela despreocupação dos usuários em evitar vestígios de suas ações na rede mundial de computadores. A aposta no anonimato e na impunidade afasta o receio no uso de meios passíveis de monitoramento. Com isso, criminosos sentem-se à vontade para navegar livremente por salas de bate-papo, como o falso agenciador de modelos, ou utilizar programas de compartilhamento “peer-to-peer”, a exemplo do que fizeram os outros dois réus condenados recentemente.
O ex-policial foi alvo de busca e apreensão em julho de 2018 após a Polícia Civil de São Paulo detectar possíveis acessos a materiais com pornografia infantil a partir de seu IP. Os agentes recolheram um computador no qual a perícia detectou a existência de 173 arquivos relacionados a pedofilia, todos obtidos por meio de softwares de compartilhamento. No histórico de pesquisas, os técnicos observaram o uso de termos como “incesto” e outras expressões que não deixam dúvidas sobre o conteúdo que era procurado. O homem era policial havia três décadas e perdeu o cargo depois de responder a um processo administrativo na corporação.
Já no notebook do professor universitário, apreendido em 2017, os investigadores encontraram mais de 7,6 mil fotos e vídeos com teor pornográfico envolvendo crianças e adolescentes. O réu manteve o armazenamento e o compartilhamento do material por cerca de 3 anos com uso do computador pessoal e de equipamento fornecido pela instituição de ensino na qual trabalha. Ele deletou todos os arquivos dias antes do cumprimento da ordem de busca, mas os peritos conseguiram recuperá-los e identificá-los. Os itens continham nomes indicativos de pedofilia e, embora o professor tenha alegado não os haver obtido intencionalmente, só poderiam ser baixados pelo programa “peer-to-peer” utilizado a partir de uma ação deliberada do usuário para isso.
“Esse caso nos chamou a atenção pela quantidade de arquivos e pelo período longo da prática criminosa. Além disso, ficamos surpresos com o fato de o condenado, mesmo sendo pessoa bastante instruída, com boa posição social e acadêmica, ter se valido de um computador da própria instituição de ensino para praticar os delitos, o que evidencia que esse tipo de crime pode estar sendo praticado nos locais que menos imaginamos, por pessoas que em geral não têm antecedentes criminais e tendo como vítimas menores que muitas vezes sofrem por anos em silêncio, sem a oportunidade de denunciar os abusadores”, alertou a procuradora Marília Soares Ferreira Iftim, autora da denúncia do MPF.
Levar casos de pedofilia ao Ministério Público é fundamental para que os criminosos sejam investigados e punidos. O falso agenciador de modelos, por exemplo, só foi identificado após uma internauta denunciá-lo ao MPF ao notar as manifestações dele nas salas de bate-papo. Os relatos podem ser feitos pelo site do “MPF Serviços”, com garantia de preservação da identidade e sem necessidade de advogado. Vítimas ou pessoas que presenciem práticas de pedofilia na internet podem acessar o endereço https://www.mpf.mp.br/mpfservicos e, na área “Protocolar”, clicar em “Representação inicial (denúncia)”. Na página seguinte, basta preencher o formulário e anexar prints e arquivos, se houver.
Punições - Penas para os crimes de compartilhamento e armazenamento de fotos e vídeos com pornografia infantil podem ser aplicadas autonomamente, segundo uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ou seja, a corte reconheceu que uma prática não depende da outra para se realizar. Com isso, a Justiça pode considerar o concurso material de ambas, o que significa o aumento das penalidades a partir da soma dos períodos de prisão correspondentes a cada uma delas. Esse entendimento já foi aplicado nas três sentenças proferidas em Guaratinguetá
“Além do respaldo jurisprudencial, a sintonia entre as polícias e o Ministério Público e a sensibilidade do Judiciário local para o tema têm sido essenciais para obtermos significativas condenações dos abusadores. É um trabalho muito desgastante do ponto de vista psicológico, mas fundamental para a sociedade. Considero que se trata hoje de uma das atuações mais importantes do MPF em Guaratinguetá”, ressaltou Iftim. “Temos tido também a preocupação de avaliar cuidadosamente os elementos de prova para identificar potenciais vítimas e, se for o caso, mediante autorização judicial, compartilhar o resultado das perícias das mídias apreendidas com representantes do Ministério Público Estadual do respectivo município, a fim de proteger os menores em eventual situação de risco.”
Em paralelo à atuação na esfera penal, o MPF em Guaratinguetá conduz um inquérito civil público pelo qual busca firmar termos de cooperação técnica com entidades de apoio a vítimas de abuso infantil. Uma delas é a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad), que já tem desenvolvido projetos em parceria com o MPF tanto para prestar esse auxílio quanto para conscientizar pais e responsáveis sobre o tema. É dever do Ministério Público não só tomar providências para a punição dos criminosos, mas também assegurar às vítimas uma série de direitos, como a proteção psicológica e a reparação de danos materiais e morais que tenham sofrido.
“Com essa atuação, esperamos cumprir o disposto na Resolução 243/2021 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e conferir prioridade às crianças e adolescentes vitimados por esses crimes. É preciso voltar o olhar às vítimas e à sua fragilidade”, concluiu Flávia Nóbrega.
Assessoria de Comunicação
Ministério Público Federal em São Paulo
twitter.com/mpf_sp
facebook.com/MPFSP
youtube.com/mpfspcanal
Informações à imprensa:
saj.mpf.mp.br
(11) 3269-5701
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fale a verdade.