Direito real de habitação assegura moradia vitalícia ao cônjuge ou companheiro sobrevivente
14/07/2013
Há dois direitos garantidos pela legislação brasileira que se
tornam colidentes em algumas situações: o direito de propriedade sobre
fração de imóvel e o direito real de habitação. Isso porque, de um lado,
filhos querem ter garantido o direito à herança após a morte do
ascendente e, de outro, o cônjuge (ou companheiro) sobrevivente, que
residia na propriedade do casal, deseja preservar o usufruto sobre o
imóvel.
A ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), entende que “é necessário ponderar sobre a
prevalência de um dos dois institutos, ou, ainda, buscar uma
interpretação sistemática que não acabe por esvaziar totalmente um
deles, em detrimento do outro”.
De acordo com o ministro Paulo
de Tarso Sanseverino, também da Terceira Turma, o cônjuge sobrevivente
tem direito real de habitação sobre o imóvel em que residia o casal,
“desde que seja o único dessa natureza e que integre o patrimônio comum
ou o particular de cada cônjuge no momento da abertura da sucessão”.
Ele considera que a norma prevista no artigo 1.831
do Código Civil (CC) de 2002 visa assegurar ao cônjuge sobrevivente
(independentemente do regime de bens adotado no casamento) o direito de
moradia, ainda que outros herdeiros passem a ter a propriedade sobre o
imóvel de residência do casal, em razão da transmissão hereditária (REsp
1.273.222).
Propriedade e usufruto
Segundo o ministro
Luis Felipe Salomão, da Quarta Turma do STJ, o proprietário tem o poder
de usar, gozar e dispor da coisa, “bem como de reavê-la do poder de quem
a detenha ou possua injustamente”. Já o usufrutuário, segundo ele, tem o
direito de usar e de receber os frutos.
Ele mencionou que,
assim como o usufruto, o direito real de habitação limita o direito de
propriedade. É um “direito de fruição reduzido que consiste no poder de
ocupação gratuita de casa alheia”.
Evolução
O CC/02
representou uma evolução quanto ao tema. O CC de 1916, com a redação que
lhe foi dada pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), garantia o
direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da
família apenas ao cônjuge sobrevivente casado em regime de comunhão
universal de bens (parágrafo 2º do artigo 1.611).
Segundo o
ministro Sidnei Beneti, da Terceira Turma do STJ, a restrição contida no
código antigo era alvo de severas críticas, “por criar situações de
injustiça social”, principalmente a partir de 1977, quando o regime
legal de bens do casamento deixou de ser o da comunhão universal para
ser o da comunhão parcial.
“Possivelmente em razão dessas
críticas, o legislador de 2002 houve por bem abandonar a posição mais
restritiva, conferindo o direito real de habitação ao cônjuge supérstite
casado sob qualquer regime de bens”, afirmou o ministro.
Direito equivalente
Sidnei Beneti lembrou que, antes do CC/02, a Lei 9.278/96
conferiu direito equivalente às pessoas ligadas pela união estável. De
acordo com o parágrafo único do artigo 7º, “dissolvida a união estável
por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de
habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento,
relativamente ao imóvel destinado à residência da família”.
A
partir daí, até o início da vigência do CC/02, a interpretação literal
das leis então vigentes poderia levar à conclusão de que o companheiro
sobrevivente estava em situação mais vantajosa que a do cônjuge
sobrevivente (casado em regime que não fosse o da comunhão universal de
bens). Contudo, para o ministro Beneti, “é de se rechaçar a adoção dessa
interpretação literal da norma”.
“O casamento, a partir do que
se extrai inclusive da Constituição Federal, conserva posição
juridicamente mais forte que a da união estável. Não se pode, portanto,
emprestar às normas destacadas uma interpretação dissonante dessa
orientação constitucional”, declarou.
Equiparação
Em junho de 2011, a Terceira Turma equiparou
a situação do cônjuge sobrevivente, casado sob o regime de separação
obrigatória de bens (cujo cônjuge faleceu durante a vigência do CC/16), à
do companheiro, quanto ao direito real de habitação.
O casal
era dono de um apartamento em área nobre de Brasília. Com o falecimento
da mulher, em 1981, transferiu-se às quatro filhas do casal a meação que
ela tinha sobre o imóvel. Em 1989, o homem casou-se novamente, tendo
sido adotado o regime de separação obrigatória de bens. Ele faleceu dez
anos depois, ocasião em que as filhas do primeiro casamento herdaram a
outra metade do imóvel.
As filhas moveram ação de reintegração
de posse contra a viúva para tirá-la do imóvel. O juízo de primeiro grau
indeferiu o pedido com base no artigo 1.831 do CC/02. O Tribunal de
Justiça do Distrito Federal manteve a sentença.
Analogia
No
STJ, os principais argumentos utilizados pelas herdeiras foram a data
de abertura da sucessão (durante a vigência do CC/16) e o regime de bens
do casamento (separação obrigatória). Os ministros aplicaram, por
analogia, o artigo 7º da Lei 9.278, dando à viúva o direito de continuar
habitando o imóvel da família.
“Uma interpretação que melhor
ampara os valores espelhados na Constituição Federal é aquela segundo a
qual o artigo 7º da Lei 9.278 teria derrogado o parágrafo 2º do artigo
1.611 do CC/16, de modo a neutralizar o posicionamento restritivo
contido na expressão ‘casados sob o regime da comunhão universal de
bens’”, disse o ministro Sidnei Beneti, relator (REsp 821.660).
Quarta parte
Caso
semelhante foi analisado pela Quarta Turma em abril de 2012.
Contrariando o entendimento adotado pela Terceira Turma, os ministros
consideraram que, nas sucessões abertas durante a vigência do CC/16, a
viúva que fora casada no regime de separação de bens tem direito ao
usufruto apenas da quarta parte dos bens deixados, se houver filhos
(artigo 1.611, parágrafo 1º, do CC/16).
A única herdeira de um
homem que faleceu na cidade de Goiânia, em 1999, ajuizou ação contra a
mulher com quem ele era casado pela segunda vez, sob o regime de
separação de bens. Reconhecendo que a viúva tinha direito ao usufruto da
quarta parte do imóvel onde residia com o esposo, a filha do falecido
pediu o pagamento de aluguéis relativos aos outros três quartos do
imóvel.
Aluguéis
O juízo de primeiro grau condenou a
viúva ao pagamento de aluguéis pela ocupação de três quartos do imóvel,
somente até 10 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do Código
Civil atual, sob o fundamento de que a nova lei conferiu a ela o direito
real de habitação, em vez do usufruto parcial. A sentença foi mantida
pelo tribunal de justiça.
A filha recorreu ao STJ. Sustentou que
não é possível aplicar duas regras sucessórias distintas à mesma
situação jurídica. O relator do recurso especial, ministro Luis Felipe
Salomão, não concordou com as instâncias ordinárias quanto ao pagamento
dos aluguéis somente até o início da vigência do novo código.
Segundo
ele, o direito real de habitação conferido pelo CC de 2002 à viúva,
qualquer que seja o regime de bens do casamento, não alcança as
sucessões abertas na vigência da legislação revogada. “Com o escopo de
não atingir a propriedade e os demais direitos reais eventualmente
aperfeiçoados com a sucessão aberta ainda na vigência do código de 16,
previu o artigo 2.041 do código atual sua aplicação ex nunc [não retroage]”, ensinou Salomão.
O
ministro explicou que, se não fosse assim, a retroatividade do CC/02
atingiria direito adquirido da herdeira, “mutilando parcela do próprio
direito de propriedade de quem o tinha em sua amplitude”. Diante disso, a
Turma deu provimento ao recurso especial (REsp 1.204.347).
União estável
O
direito real de habitação assegurado ao companheiro sobrevivente pelo
artigo 7º da Lei 9.278 incide sobre o imóvel em que residia o casal em
união estável, ainda que haja mais de um imóvel a inventariar. Esse
entendimento foi adotado pela Terceira Turma em junho de 2012.
No
caso analisado pela Turma, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) deu
provimento ao recurso dos filhos de um homem que faleceu em 2005 contra
sentença que reconheceu o direito real de habitação à companheira dele.
Para
o TJPR, o direito real de habitação tem por finalidade impedir que os
demais herdeiros deixem o cônjuge sobrevivente sem moradia e
desamparado. Contudo, havia outros imóveis residenciais a serem
partilhados no inventário, inclusive um localizado em Colombo (PR),
adquirido em nome da companheira na vigência da união estável.
Última residência
No
STJ, a companheira sustentou que mesmo havendo outros bens, o direito
real de habitação deveria recair necessariamente sobre o imóvel que foi a
última residência do casal. “Do fato de haver outros bens residenciais
ainda não partilhados, não resulta exclusão do direito de habitação,
quer relativamente ao cônjuge, quer ao convivente em união estável”,
afirmou Sidnei Beneti, relator do recurso especial.
O ministro
citou doutrina do pesquisador José Luiz Gavião, para quem “a limitação
ao único imóvel a inventariar é resquício do código anterior, em que o
direito real de habitação era conferido exclusivamente ao casado pela
comunhão universal”.
Gavião explica que, “casado por esse
regime, o viúvo tem meação sobre todos os bens. Havendo mais de um
imóvel, é praticamente certo que ficará com um deles, em pagamento de
sua meação, o que lhe assegura uma moradia. Nessa hipótese, não tem
necessidade do direito real de habitação” (Código Civil Comentado,
2003).
A Turma deu provimento ao recurso especial da companheira
para reconhecer o direito real de habitação em relação ao imóvel em que
residia o casal quando do óbito.
Segunda família
Em abril de 2013, o STJ reconheceu
o direito real de habitação sobre imóvel à segunda família de um
falecido que tinha filhas do primeiro casamento. A relatora do caso,
ministra Nancy Andrighi, adotou entendimento diverso, mas ficou vencida.
Em seu voto, ela deu provimento ao recurso especial das filhas do
primeiro casamento e determinou a alienação judicial do bem.
A
maioria seguiu a posição do ministro Sidnei Beneti, que proferiu o voto
vencedor. Ele verificou no processo que todo o patrimônio do falecido já
havia sido transferido à primeira esposa e às filhas após a separação
do casal. Além disso, enfatizou que o imóvel objeto do conflito era uma
“modesta casa situada no interior”.
Para Beneti, de acordo com a
jurisprudência do STJ, o direito real de habitação sobre o imóvel que
servia de residência do casal deve ser conferido ao cônjuge/companheiro
sobrevivente, “não apenas quando houver descendentes comuns, mas também
quando concorrerem filhos exclusivos do de cujos”.
Ele citou
vários precedentes da Corte, entre os quais, “a exigência de alienação
do bem para extinção do condomínio, feita pelas filhas e também
condôminas, fica paralisada diante do direito real de habitação titulado
ao pai”.
“A distinção entre casos de direito de habitação
relativos a ‘famílias com verticalidade homogênea’ não está na lei, que,
se o desejasse, teria distinguido, o que não fez, de modo que realmente
pretendeu o texto legal amparar o cônjuge supérstite que reside no
imóvel do casal”, destacou Beneti (REsp 1.134.387).
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Fonte: STJ (DF)
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